quarta-feira, dezembro 03, 2008

ÍNFIMOS INFINITOS (II)

Partilha de excertos de livros que me calaram as palavras... porque as diziam por mim.

Uma palavra. Disse-a. Amo-te - uma palavra breve. Quantos milhões de palavras eu disse durante a vida. E ouvi. E pensei. Tudo se desfez. Palavras sem inteira significação em si, o professor devia ter razão. Palavras que remetiam umas para as outras e se encostavam umas às outras para se aguentarem na sua rede aérea de sons. Mas houve uma palavra - meu Deus. Uma palavra que eu disse e repercutiu em ti, palavra cheia, quente de sangue, palavra vinda das vísceras, da minha vida inteira, do universo que nela se conglomerava, palavra total. Todas as outras palavras estavam a mais e dispensavam-se e eram uma articulação ridícula de sons e mobilizavam apenas a parte mecânica de mim, a parte frágil e vã. Palavra absoluta no entendimento profundo do meu olhar no teu, palavra infinita como o verbo divino. Recordo-a agora - onde está? Como se desfez? Ou não desfez mas se alterou e resfriou e absorveu apenas a fracção de mim onde estava a ternura triste, o conforto humilde, a compaixão. Não haverá então uma palavra que perdure e me exprima todo para a vida inteira? E não deixe de mim um recanto oculto que não venha à sua chamada e vibre nela desde os mais finos filamentos de si? Uma palavra. Recupero-a agora na minha imaginação doente. Amo-te. Na intimidade exclusiva e ciumenta do nosso olhar mútuo e encantado. Fecha-nos o lençol na claridade difusa do amanhecer, estás perto de mim no intocável da tua doçura. Frágil de névoa. Fímbria de sorriso e de receio, de pavor, no meu olhar embevecido. Uma palavra. A primeira que em toda a minha vida me esgotou o ser. A que foi tão completa e absorvente, que tudo o mais foi um excesso na criação. Deus esgotou em mim, na minha boca, todo o prodígio do seu poder. Ao princípio era a palavra. Eu a soube. E nada mais houve depois dela.

*
Vergílio Ferreira, in 'Para sempre'

_________*_________

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-te de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.

*
Nuno Júdice, in 'Pedro Lembrando Inês'

__________*__________

Apenas uma palavra. Uma súplica apenas. Apenas uma aragem.

Apenas uma prova de que ainda estás vivo e à espera.

Não, nada de súplicas, apenas um respirar, respirar não,

apenas estar pronto, estar pronto não, apenas um pensamento,

um pensamento não, apenas o sono tranquilo.

Não há ter, apenas Ser, apenas o Ser que reclama o último alento,

a morte da respiração.

Nada disso - atravessando as palavras há restos de luz.


Franz Kafka, in
'Parábolas e Fragmentos'

______________*____________

"Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!"


Bernardo Soares (1), in "Livro do Desassossego"(2)

(1) Heterónimo de Fernando Pessoa

(2) O livro que, se não existisse, tudo seria ainda mais incompleto. O meu livro de cabeceira.



4 comentários:

Alberto Campos disse...

São os livros e a sua alma resquicios do que a nossa propria alma encerra, cala ou simplesmente desconhece o modo de dizer.
São, quem escreve, a tradição oral de antanho, que nos lembra nossa própria existencia, temores e dores.
Assim são também os desencontrados encontros nestas ditas novas tecnologias onde nos revemos e não nos sentimos sós.
Por tudo isto me guiam os passos até estes MomenTus de intimidade e maresia.

Maria disse...

Os mesmos gostos na leitura...
Este Vergílio Ferreira é para reler e guardar "para sempre"...

Gosto-te.
e
Abraço-te

Ni disse...

Semdúvida "Pedro Lembrando Inês"... A ausência que dói mas não magoa, que se limita a alma!
Fantástico...

Deixei-me conquistar...

Beijinho e obrigada pela partilha tão rica e carinhosa***

Anónimo disse...

Uma Voz na Pedra


Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.

Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa